
Um candidato que ficou em 63º lugar em um concurso público conseguiu uma vaga reservada para pessoas com deficiência três anos depois. O cargo de procurador judicial tem remuneração líquida média acima de R$ 30 mil, um dos mais disputados da cidade. O jovem é filho da procuradora de contas do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco Maria Nilda Silva. A nomeação aconteceu na antevéspera do Natal, quando a atenção da mídia e da sociedade está voltada para as festividades.
Nota editorial: Este conteúdo tem caráter analítico e opinativo, baseado em debates públicos e fontes abertas. Não afirma como fatos comprovados condutas ilegais ou ilícitas. Seu objetivo é promover reflexão crítica sobre temas de interesse público.
A manobra que transformou o 63º em primeiro lugar
O prefeito João Campos (PSB) nomeou na última terça-feira (23), em edição extra do Diário Oficial do município, o candidato Lucas Vieira Silva para o cargo de procurador judicial do município na vaga destinada para Pessoas com deficiência (PcD) do concurso, realizado em 2022. O problema é que esse candidato nunca se inscreveu como pessoa com deficiência no concurso original.
Lucas Vieira Silva não se inscreveu como PcD e havia sido classificado, conforme resultado homologado do concurso, na posição 63 nas vagas de ampla concorrência. Com apenas três vagas oficiais para ampla concorrência, sua chance de nomeação era praticamente zero. A solução apareceu de forma surpreendente.
Em 19 de maio de 2025, quase três anos após o concurso, o candidato Lucas Vieira Silva apresentou à Prefeitura requerimento afirmando que foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Três anos depois de fazer o concurso como pessoa sem deficiência, ele descobriu que tinha autismo. Uma descoberta conveniente que mudou completamente sua posição na fila.
A manobra funcionou perfeitamente. A homologação oficial ocorreu em 14 de junho de 2023 mas foi republicada, com novo resultado, no dia 20 de dezembro deste ano, dois anos e meio depois. O resultado: Lucas saiu da posição 63 para primeiro lugar nas vagas PcD, tomando o lugar de outro candidato que aguardava nomeação há mais de dois anos.
A família vocacionada para o Estado
A história fica mais interessante quando analisamos os antecedentes familiares. O candidato é filho da procuradora de contas do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco Maria Nilda Silva, que atua na corte de contas na fiscalização dos atos administrativos e gastos públicos de todas as gestões, incluindo a do Recife. Em outras palavras, a mãe fiscaliza os atos da prefeitura que nomeou o filho.
Essa situação levanta questões sobre conflito de interesses. Como uma procuradora pode fiscalizar com imparcialidade os atos de uma gestão que beneficiou diretamente seu filho? A independência técnica fica comprometida quando há laços familiares envolvidos em nomeações controversas.
O fenômeno das “famílias vocacionadas para o Estado” não é novidade no Brasil. Gerações inteiras se perpetuam no serviço público, criando verdadeiras dinastias burocráticas. O que deveria ser exceção vira regra, transformando o Estado em patrimônio de certas famílias.
A questão vai além do nepotismo tradicional. É a captura do aparato estatal por grupos que se consideram proprietários das instituições públicas. O resultado é um Estado que serve aos interesses de poucos, não aos direitos de todos.
O timing perfeito: Natal e disfarce
A estratégia para abafar o caso foi cuidadosamente planejada. A nomeação ocorreu em edição extra do Diário Oficial publicado na Antivéspera do Natal, momento em que a atenção pública está voltada para as festividades familiares. Uma tática clássica da administração pública brasileira: enterrar más notícias em datas estratégicas.
O cálculo era simples. Durante o Natal, jornalistas estão de folga, cidadãos estão com a família, redes sociais têm menos engajamento. O momento ideal para fazer passar despercebida uma nomeação controversa. O problema é que a estratégia não funcionou desta vez.
A nomeação tem causado perplexidade e reação no corpo técnico da Procuradoria-Geral do Município do Recife porque a nomeação furou a fila e tomou a vaga de outro candidato que havia sido classificado em primeiro lugar nas vagas de PcD e aguardava há mais de dois anos a nomeação. Até os próprios colegas de profissão ficaram indignados com a manobra.
O que era para ser um “Natal tranquilo” virou dor de cabeça para a gestão João Campos. A tentativa de disfarce só chamou mais atenção para a irregularidade. Agora, em vez de explicar a nomeação, a prefeitura precisa explicar também por que tentou escondê-la.
O autismo virou moda nos concursos públicos
O caso expõe um fenômeno preocupante: a banalização do diagnóstico de autismo para burlar regras de concursos públicos. Em 19 de maio de 2025, quase três anos após o concurso, o candidato apresentou requerimento afirmando que foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista e solicitou sua submissão à perícia biopsicossocial e a consequente inclusão de seu nome na lista reservada aos portadores de deficiência. Uma descoberta tardĺa e conveniente.
O verdadeiro autismo é uma condição neurológica séria que afeta comunicação, interação social e comportamento. Pessoas genuinamente autistas enfrentam dificuldades reais desde a infância. Precisam de apoio especializado e, em muitos casos, têm limitações significativas para exercer certas funções profissionais.
O que estamos vendo é diferente. Adultos funcionais, que viveram décadas sem qualquer dificuldade relacionada ao autismo, descobrem magicamente a condição quando precisam de vantagem em concursos públicos. É uma distorção que prejudica quem realmente precisa de proteção legal.
Essa banalização do diagnóstico cria dois problemas graves. Primeiro, reduz vagas disponíveis para pessoas com deficiências reais. Segundo, alimenta preconceito contra autistas genuínos, que passam a ser vistos com desconfiança pela sociedade.
A revolta dos procuradores e a resistência interna
A Associação dos Procuradores do Município do Recife (APMR) aponta irregularidades no concurso público da Procuradoria Geral do Recife. Os procuradores questionam a alteração no resultado final do concurso público para o cargo, que havia sido regularmente homologado ainda no ano de 2023. Até os próprios beneficiários do sistema reagiram contra o abuso.
A nova publicação incluiu, à frente do candidato já homologado, um concorrente que não havia se inscrito originalmente como pessoa com deficiência, tendo apresentado o pedido administrativo de alteração apenas em 2025. A indignação é compreensível: mesmo dentro do serviço público, há limites para o que é considerado aceitável.
O procurador validou a nomeação mesmo com o voto contrários dos procuradores da comissão consultiva da PGM. Ou seja, a decisão foi tomada contra o parecer técnico dos próprios especialistas da área. A vontade política se sobrepôs à avaliação técnica.
O candidato prejudicado, inclusive, teria entrado com um mandado de segurança no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), na sexta-feira (26), também pedindo que seja anulado o ato de reclassificação do concurso sob risco de vícios legais. A judicialização era inevitável diante de tamanha irregularidade.
O parecer técnico ignorado e a violação das regras
A própria Procuradoria do município emitiu parecer contrário à manobra. Conforme o parecer assinado pela procuradora Maria Carolina Lindoso de Melo, “inexiste razoabilidade na aceitação de comprovação de deficiência extemporânea, com frontal violação ao princípio da vinculação ao edital”. A linguagem técnica não esconde a gravidade da situação.
“Trata-se de concurso público realizado há mais de dois anos, com estrutura de suporte à inscrição e avaliação já extinta e expirado o contrato com a instituição examinadora”. O parecer deixa claro que não havia mais condições técnicas para reavaliar candidatos.
“Veda-se a alteração da ordem fixada nessa lista há mais de dois anos para inserir um candidato apenas”. A conclusão é definitiva: a alteração não tem base legal. Mesmo assim, foi ignorada pela autoridade administrativa.
Este caso ilustra como o Estado brasileiro funciona na prática. Pareceres técnicos são produzidos para inglês ver. Quando contrariam interesses políticos, são simplesmente ignorados. A lei serve para limitar o cidadão comum, não para restringir o poder de quem manda.
Os 30 mil reais mensais e o custo da farra
O cargo de procurador judicial tem remuneração líquida média acima de R$ 30 mil, considerando as “outras vantagens”. São mais de R$ 360 mil por ano que saem do bolso do contribuinte para sustentar esse tipo de nomeação controversa. Dinheiro que poderia estar financiando educação, saúde ou segurança pública.
O procurador municipal não é apenas um funcionário comum. Ele representa juridicamente a prefeitura em processos judiciais. Quando ganha uma causa para o município, pode receber verbas de sucumbência – uma espécie de “comissão” sobre o valor recuperado. É um cargo com potencial de rendimentos bem superiores aos R$ 30 mil básicos.
Para o jovem Lucas Vieira Silva, é o início de uma carreira dourada no serviço público. Estabilidade garantida, salário alto, possibilidade de crescimento na carreira. Tudo isso aos poucos anos de formado, sem a necessidade de construir experiência no mercado privado ou enfrentar a competição real.
Para o contribuinte recifense, é mais uma conta para pagar. São seus impostos que sustentarão esse salário pelos próximos 30 ou 40 anos. E se o padrão se repetir, são seus filhos e netos que pagarão os salários dos filhos e netos de Lucas. A perpetuação da máquina pública em benefício de poucos.
Por que isso importa para sua vida
Este caso pode parecer distante da realidade do cidadão comum, mas suas implicações são diretas. Cada nomeação irregular representa recursos que deixam de ir para serviços essenciais. Cada privilégio concedido é um direito negado aos demais.
O jovem que estudou anos para um concurso, seguiu todas as regras, ficou bem classificado, mas não tinha padrinho político, vê sua vaga ser entregue para quem descobriu uma deficiência na hora certa. É o mérito sendo substituído pela conexão familiar.
A pessoa com deficiência real, que precisa genuinamente da reserva de vagas, vê seu espaço sendo ocupado por quem não tem limitação alguma. É a proteção social sendo desvirtuada para beneficiar privilegiados.
O Estado que deveria proteger os mais vulneráveis se torna instrumento de perpetuação de privilégios. Em vez de nivelar as oportunidades, cria castas e dinastias. O resultado é uma sociedade menos justa e menos meritocrática.
O que você pode fazer diante disso
A primeira reação pode ser de revolta ou desânimo. “Sempre foi assim, sempre será”, pensam muitos. Mas casos como este só ganham repercussão quando a sociedade reage. A imprensa só investiga quando há pressão social. Políticos só recuam quando sentem o peso da opinião pública.
A transparência é a melhor arma contra esse tipo de abuso. Cada concurso público deveria ter seus resultados amplamente divulgados. Cada nomeação deveria ser justificada publicamente. Cada alteração em listas homologadas deveria passar por escrutínio rigoroso.
A tecnologia pode ser aliada nessa luta. Sistemas de inteligência artificial podem detectar padrões suspeitos em nomeações. Algoritmos podem identificar coincidências familiares em aprovações. A digitalização pode tornar mais difícil esconder irregularidades.
Mas nada disso acontecerá sem pressão da sociedade. É preciso cobrar dos políticos, fiscalizar as nomeações, apoiar iniciativas de transparência. O Estado só muda quando sente que está sendo observado de perto.
O caso de Recife mostra que ainda há esperança. A manobra foi descoberta, denunciada, está sendo questionada judicialmente. Os próprios procuradores se rebelaram contra o abuso. Isso só acontece quando a sociedade está atenta e mobilizada.
O Estado não é propriedade de ninguém. É patrimônio de todos os cidadãos. E como tal, deve ser administrado com transparência, legalidade e respeito ao interesse público. Quando isso não acontece, é direito e dever de cada cidadão cobrar mudanças. A democracia não funciona com cidadãos passivos. Ela exige participação ativa na fiscalização do poder.


