dezembro 28, 2025

Ludwig M

80% da Lei Rouanet vai para artistas ricos de Leblon e Pinheiros

80% da Lei Rouanet vai para artistas ricos de Leblon e Pinheiros

Um estudo do Observatório da Cultura do Brasil comprova o que muitos já suspeitavam. Entre 2014 e 2023, 88,89% dos valores captados por projetos culturais, correspondente a R$ 5,28 bilhões, foram destinados a regiões centrais da cidade, que concentram apenas 17,21% da população. O Leblon e Pinheiros, bairros nobres do Rio e São Paulo, ficam com cerca de 80% dos recursos se concentram no eixo Rio-São Paulo, com forte incidência em bairros nobres como Pinheiros.

Nota editorial: Este conteúdo tem caráter analítico e opinativo, baseado em debates públicos e fontes abertas. Não afirma como fatos comprovados condutas ilegais ou ilícitas. Seu objetivo é promover reflexão crítica sobre temas de interesse público.

O que os números revelam sobre a concentração de recursos

Os dados são mais reveladores do que qualquer discurso. As periferias, que abrigam mais da metade dos habitantes da cidade (50,67%), ficaram com apenas 1,38% do total, ou seja, R$ 83 milhões. É um contraste brutal que expõe a realidade por trás da suposta democratização cultural.

O pesquisador Allan Anjos Dantas explica que “É um raio de cinco quilômetros da avenida Paulista que está captando praticamente 90% do recurso da Rouanet”. Ou seja, uma pequena área geográfica concentra quase toda a verba pública destinada à cultura no país.

Esta concentração não é acidental. É resultado de um sistema que favorece quem já tem acesso aos mecanismos burocráticos e contatos políticos. O artista da periferia sequer sabe como começar um projeto na Lei Rouanet, enquanto produtoras estabelecidas navegam pelos trâmites com facilidade.

A situação se repete em todo o país. Um dos desafios históricos da Lei Rouanet é a concentração de recursos no Sudeste, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. O Norte e Nordeste, regiões com rica diversidade cultural, ficam com as migalhas do orçamento cultural brasileiro.

Como funciona a distribuição na prática

O processo de seleção de projetos revela muito sobre quem realmente se beneficia da Lei Rouanet. Em tese, qualquer artista pode submeter um projeto. Na prática, apenas quem tem tempo, recursos e conhecimento técnico consegue navegar pela burocracia.

Elaborar um projeto cultural exige conhecimento especializado, tempo disponível e capacidade de apresentar propostas técnicas complexas. O artista pobre, que trabalha para sobreviver, não tem essas condições. Já os artistas estabelecidos contam com equipes de produção e consultores especializados.

O resultado é previsível: quando a ministra Margareth Menezes analisa os projetos em sua mesa, naturalmente privilegia propostas vindas de nomes conhecidos e bem conectados. Não é conspiração, é consequência natural de um sistema mal desenhado.

Além disso, o processo de captação de recursos junto às empresas patrocinadoras também favorece projetos com apelo midiático e artistas famosos. Uma empresa prefere associar sua marca a um nome conhecido do que apostar em um talento desconhecido da periferia.

O paradoxo da política cultural brasileira

A Lei Rouanet completou 34 anos nesta terça-feira (23) e vive seu momento mais controverso. Neste ano, ela atravessa o momento mais crítico de sua história com extremos entre oportunidades, críticas e contradições. Criada para ampliar o acesso ao financiamento cultural por meio da renúncia fiscal, a principal política de fomento do país passou a simbolizar um sistema excludente, concentrador e administrativamente fragilizado.

O mais irônico é que defensores e críticos da lei chegam à mesma conclusão por caminhos diferentes. O Observatório da Cultura do Brasil, apoiado pelo Ministério da Cultura, comprova exatamente o que a direita sempre denunciou: a lei serve aos ricos, não aos artistas pobres.

Durante o governo Bolsonaro, foram estabelecidas regras para privilegiar projetos menores e reduzir o acesso de grandes produtoras aos recursos. O resultado foi uma gritaria de artistas famosos reclamando que não conseguiam mais “mamar na teta” do Estado.

Agora, no governo Lula, os recursos explodiram novamente. “Entre 2023 e 2025, foram de R$ 3 bilhões (captados), foram 22 mil propostas apresentadas só em 2025”, comemora a ministra. Mas onde está indo esse dinheiro? Para os mesmos lugares de sempre.

Artistas ricos versus artistas de verdade

Existe uma diferença fundamental entre artista de verdade e “artista” profissional do subsídio estatal. O artista de verdade faz shows em bares, toca no interior, cria sem depender de verba pública e conquista seu público pela qualidade do trabalho.

Já os “artistas” da Lei Rouanet são outra categoria: gente rica que não quer correr o risco de investir o próprio dinheiro em seus projetos. Preferem usar recursos públicos para bancar suas produções milionárias, eliminando qualquer risco financeiro pessoal.

Margarete Menezes, Wagner Moura, Fernanda Torres e outros nomes consagrados poderiam perfeitamente financiar seus projetos com recursos próprios. Têm patrimônio, têm acesso ao mercado, têm contatos na mídia. Mas por que arriscar o próprio dinheiro quando podem usar o dinheiro do contribuinte?

Enquanto isso, bandas talentosas do interior, grupos de teatro comunitário e artistas de rua continuam invisíveis para a política cultural oficial. Esses sim precisariam de apoio, mas não têm como acessar os mecanismos burocráticos da lei.

O problema estrutural que ninguém quer enfrentar

A questão vai além da simples concentração geográfica ou social. Em 2025, o próprio Ministério da Cultura recebeu mais de 22,5 mil novas propostas de projetos via Rouanet, ampliando um gargalo administrativo que nunca foi estruturalmente resolvido: não tem sido prestado ou fechado contas, deixando cada gestão como legado, o não saneamento de projetos da Lei Rouanet. Mudanças normativas recentes reduziram drasticamente a fiscalização financeira, dispensando a análise detalhada da maioria dos projetos.

O Tribunal de Contas da União revelou dados alarmantes. Ao final de 2023, mais de 26 mil projetos estavam com pendências na prestação de contas. “Isso significa que ninguém sabe efetivamente como o dinheiro foi gasto”.

É um sistema que funciona assim: aprovam-se projetos aos milhares, liberam-se recursos bilionários, mas ninguém fiscaliza adequadamente como o dinheiro é usado. A prestação de contas virou formalidade burocrática, não controle efetivo.

Esta falta de controle beneficia exatamente quem já domina o sistema: grandes produtoras e artistas estabelecidos, que sabem como contornar as exigências legais e manter os recursos fluindo para seus projetos.

A farsa da descentralização

O governo atual promete descentralizar os recursos através de programas como Rouanet Norte, Rouanet Nordeste e Rouanet Favelas. “A Rouanet Norte foi esse exercício de correção, porque o estudo que nós fizemos, em quatro anos, tinha apenas R$ 4 mil captados para a região Norte. Foram investimentos de R$ 24 milhões em 125 propostas selecionadas”.

Parece impressionante até você fazer as contas. R$ 24 milhões para toda a região Norte em anos de programa especial, enquanto um único bairro nobre de São Paulo recebe centenas de milhões anualmente pelo mecanismo regular da lei.

São migalhas disfarçadas de política inclusiva. Uma forma de acalmar as críticas sem alterar substancialmente o funcionamento do sistema. O grosso dos recursos continua indo para os mesmos destinatários de sempre.

Além disso, esses programas regionais exigem ainda mais burocracia e intermediação estatal. Em vez de simplificar o acesso, criam mais camadas de controle governamental sobre quem pode ou não fazer cultura no Brasil.

Por que o livre mercado seria melhor

O argumento oficial é que a Lei Rouanet democratiza o acesso à cultura e gera retorno econômico. “Para cada R$ 1 que é usado na Lei Rouanet, volta R$ 7. […] Do perdão fiscal de quase R$ 3 bilhões, fez gerar R$ 25 bilhões na economia nacional, no PIB nacional”, afirma a ministra.

Mas esse cálculo esconde uma realidade importante: qualquer atividade econômica gera efeitos multiplicadores. Se esses R$ 3 bilhões ficassem no bolso dos contribuintes, também gerariam empregos e movimentação econômica, provavelmente de forma mais eficiente.

No livre mercado, artistas precisam conquistar público e gerar valor real. Peças teatrais ruins não se sustentam, filmes sem qualidade não atraem espectadores, shows vazios não pagam as contas. É o público, não o burocrata, quem decide o que tem valor cultural.

Quando o Estado intervém, distorce esse processo natural. Financia projetos que talvez não tenham demanda real, privilegia artistas por critérios políticos e ideológicos, e desvia recursos de atividades que poderiam ser mais produtivas.

As consequências para a cultura genuína

A Lei Rouanet não apenas concentra recursos nos artistas ricos. Ela também prejudica o desenvolvimento cultural orgânico do país. Quando o Estado escolhe quais manifestações culturais merecem apoio, inevitavelmente privilegia algumas em detrimento de outras.

A cultura brasileira sempre foi vibrante e diversa muito antes da Lei Rouanet existir. O brasileiro tem música, dança, teatro e arte nas veias. Nunca precisou de ministro ou secretário para decidir o que é ou não é cultura.

Mas quando você cria um mecanismo de financiamento estatal, automaticamente estabelece uma hierarquia artificial. Os artistas “oficiais”, que recebem recursos públicos, ganham vantagem competitiva sobre os artistas independentes.

O resultado é uma distorção do mercado cultural. Eventos subsidiados concorrem deslealmente com produtores que investem recursos próprios. Artistas ligados ao governo têm mais visibilidade que talentos independentes. A meritocracia cultural é substituída pela proximidade política.

O que fazer diante dessa realidade

A solução não é reformar a Lei Rouanet pela milésima vez. O prazo aberto até 15 de novembro mobiliza o setor, mas impõe uma dúvida: bastará uma revisão normativa para corrigir um modelo corroído por contradições jurídicas e sociais? A experiência mostra que não.

Cada governo promete mudanças, cria novos mecanismos de controle, inventa modalidades regionais, mas o problema estrutural permanece. Enquanto houver distribuição centralizada de recursos culturais, haverá concentração e privilégios.

A alternativa seria radical: acabar com o mecanismo de renúncia fiscal e deixar que os próprios contribuintes decidam diretamente como destinar parte de seus impostos a projetos culturais. A proposta de projeto de lei 1.730/23, que tramita na Câmara dos Deputados, permitirá que qualquer cidadão possa utilizar seu IR para escolher que projeto cultural poderá patrocinar.

Essa seria uma verdadeira democratização: cada brasileiro poderia escolher, sem intermediários governamentais, quais iniciativas culturais apoiar. O poder de decisão sairia das mãos de ministros e secretários e voltaria para o cidadão comum.

A Lei Rouanet completou 34 anos perpetuando privilégios e concentrando recursos. Os dados comprovam que ela falhou em seu objetivo de democratizar a cultura. Talvez seja hora de admitir que algumas políticas públicas fazem mais mal que bem.

Diante de tantas evidências sobre a concentração de recursos em bairros nobres e artistas ricos, uma pergunta permanece: até quando vamos sustentar um sistema que privilegia poucos em nome de ajudar muitos?

Fontes

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